cutucar a casca, mas não queira acelerar a ‘queijação’ na Serra da Estrela: as ovelhas zangam. Por isso é que sai coisa boa
Tocar com o indicador um queijo serra da estrela recém-preparado, ali na fuça da senhora que cuidadosamente o modelou, torceu e retorceu o tecido para drenar parte do soro, não é das coisas mais educadas a se fazer. Mas foi irresistível. A ponta do dedo não matou a curiosidade de descobrir como um queijo pode ser tão cremoso, porque a resposta veio em forma de rigidez (do queijo, não da senhora) e só deixou mais dúvida.
O Paladar visitou a propriedade de Júlio dos Santos Ambrósio, em Quinta da Póvoa, Prados, e a primeira pista de por que o serra da estrela tem essa textura delicada veio em forma de sabedoria: “Queijo não gosta de pressa”.
Senhor Ambrósio tem razão. Pressa é palavra que não existe no vocabulário de quem faz o queijo montanhês. São meses cuidando do rebanho – de ovelhas com raça determinada, se a intenção for certificar o queijo com o selo de denominação de origem protegida. Tarefa masculina. Às mulheres cabe a “queijação”. Ou seja, a produção. Boa parte dos produtores de serra da estrela trabalham em família. A queijaria do senhor Ambrósio envolve três filhos, a nora e a mulher – até o neto, Davide, de 3 anos, anda para cá e para lá a ordenhar ovelhas e provar (e aprovar) a massa ainda morna, sempre na barra da saia da mãe.
A produção vai de outubro a maio. “Precisamos de temperatura baixa para que a coalhada faça massa. Quanto mais alta, menos cremoso o queijo fica”, diz seu Ambrósio, que nasceu vendo os pais fazerem o serra da estrela. “As temperaturas daqui em diante começam a subir, e não conseguimos queijos com este creme que temos agora. De junho a setembro tratamos dos pastos e das forragens para alimentar os bichos no inverno. Descansam as ovelhas, as senhoras e nós também.”
Ainda que existam muitos produtores na região da Serra da Estrela, poucas queijarias são certificadas (leia à direita). “O controle é muito mais rígido. Garante que o consumir vá se servir de um queijo genuíno”, diz. “Hoje, desculpa o termo, há muito malabarismo e até falsificação de rótulos. Queijos que trazem a inscrição serra da estrela sem que tenham um miligrama de queijo serra da estrela. São industriais, feitos com leite do país vizinho e de raças não permitidas.”
É que só pode ser chamado de serra da estrela o queijo certificado, que cumpre várias especificações. Os demais recebem a alcunha de queijo de ovelha curado.
“Certifico todos, mas se tiver qualquer arranhão ou rachadura não, porque uma das regras é que o queijo esteja bonito e com boa manteiga”, diz a produtora Manuela Granjal, de Minhocal.
Ok. O amanteigado está explicado. Mas sair de Portugal entendendo porque um queijo que lá é vendido a € 15 o quilo (cerca de R$ 35) chega aqui custando R$ 370 é simplesmente impossível.
Os tipos e as fases
Requeijão (soro)
Subproduto do queijo serra da estrela, é feito com o soro que escorre durante o fabrico deste. No seu preparo, o soro é levado ao fogo até abrir fervura e formar uma massa na superfície. Pode receber adição de água (10% a 20%), para tirar o excesso de sal, ou de leite de ovelha ou de cabra (até 18%). É macio – lembra a textura de uma ricota fresca – e bem branco. Tem aroma suave e sabor delicado. Costuma ser consumido com doce de abóbora (pouco doce!) ou de tomate
Amanteigado (quando é levado à primeira câmara fria)
Pesa de 500g a 1,7 kg, tem de 9 cm a 20 cm de diâmetro e 4 cm a 6 cm de altura. Cilíndrico e sem bordas definidas, é envolvido por uma cinta de tecido branca, para que não deforme. Passa por uma cura de no mínimo 30 dias, dividida em duas fases. Sua crosta é lisa, semimole e amarelada; e a pasta, amanteigada, cremosa e marfim. É um queijo de aroma intenso e sabor levemente acidulado, com suave amargor
Velho (segunda fase)
Curado por ao menos 90 dias, pesa de 700g a 1,2 kg, tem de 11 cm a 20 cm de diâmetro e de 3 cm a 6 cm de altura. É cilíndrico, tem crosta lisa e firme; e a pasta é dura, ligeiramente quebradiça – é um queijo para ser cortado em fatias. O aroma é persistente, e o sabor, forte, picante.
Queijo cremoso? Só o de leite de ovelha da serra
Só as raças ‘bordaleira serra da estrela’ e ‘churra mondegueira’ garantem o teor de gordura que dá cremosidade ao queijo
Estar na área geográfica demarcada é a primeira, mas não a única exigência para que o queijo serra da estrela seja certificado. Tem de ser feito exclusivamente com leite de ovelha. E, mais que isso, de apenas duas raças: a bordaleira serra da estrela e a churra mondegueira – ambas pastoreadas na região. São raças tidas como menos “produtivas”, porém com alto teor de gordura no leite, essencial para garantir a cremosidade que dá fama ao queijo.
“No pico da produção, usamos 5 litros para fazer 1 quilo de queijo, enquanto com o leite de outras raças seriam necessários de 6 a 7 litros”, explica Júlio dos Santos Ambrósio, produtor de Quinta da Póvoa, em Prados, que faz queijo amanteigado certificado desde 1990.
Cru, o leite ordenhado no dia é coagulado com flor de cardo (Cynara cardunculus, L). Recebe, além disso, sal. Nada mais. Deve maturar em câmara fria, com temperatura e umidade controladas, por no mínimo 30 dias (o amanteigado) ou 120 dias (o velho).
Fora as exigências de padrão de produção e formato, os rebanhos e as queijarias passam por uma série de exames e análises antes de obterem a certificação.
“São gastos elevadíssimos até chegar ao consumidor. Queijo muito grande nem convém certificar, porque o selo o torna muito caro. E o poder de compra aqui anda baixo. Vendido pelo produtor, o quilo custa € 15. Mas no comércio podem cobrar mais de € 20”, diz o senhor Ambrósio.
Os produtores certificados têm um contrato anual. “Além do controle de sanidade dos rebanhos e das instalações da queijaria, o produto certificado passa por um painel de provadores que avaliam a forma, a crosta, a textura e a cor da pasta e pontuam o queijo”, explica Luísa Barros, técnica de controle da Beira Tradição, entidade que certifica este e outros produtos tradicionais da região da Beira.
Depois de pronto, o queijo serra da estrela continua sendo acompanhado por meio de ensaios de rastreabilidade. “Vamos ao mercado, retiramos amostras do lote, verificamos a marca atribuída ao produtor e rastreamos o produto até o início para ver se as características conferem com os dados que nós temos”, diz Luísa. “A vantagem da certificação para o consumidor é garantia de que aquele produto é genuíno e de qualidade.”
Reino dos rebanhos felizes e dos famosos redondos certificados
ENTREVISTA: Sylvie Correia, engenheira zootécnica da Estrelacoop
Em vales bucólicos ao pé da Serra da Estrela, ovelhas pastam por todos os lados. Cabe a elas o sustento de boa parte da população que vive na zona rural ao redor de vilarejos com ruas com calçamento de pedra e casario histórico que, por vezes, parecem inabitados.
Com demarcação geográfica, a região de clima frio e altitude elevada – é a mais alta de Portugal, com 1.993 m – tem hoje quatro produtos certificados: o queijo serra da estrela (amanteigado), o velho (curado), o requeijão (fresco) e o borrego.
“Somos detentores da marca de denominação de origem dos produtos feitos aqui na Serra da Estrela e reconhecidos na União Europeia”, diz a engenheira zootécnica Sylvie Correia, da Cooperativa dos Produtores de Queijo Serra da Estrela (Estrelacoop).
Leia abaixo a entrevista concedida por Sylvie ao Paladar, por telefone.
Quantos produtores de queijo existem hoje na Serra da Estrela? Há muitos certificados?
Certificados há 19. E normalmente fazem todos os produtos: o queijo amanteigado, o velho, o requeijão e o borrego. Raramente criam só o borrego, e requeijão ao menos metade faz. Mas os não certificados nós não sabemos, porque não trabalhamos com eles.
Por que muitos produtores ainda não certificam seus queijos?
Alguns já abriram o processo de certificação e continuam a fazer com as mesmas condições exigidas para que recebam o selo, mas não quiseram certificar porque esse processo tem custos. Acabam colocando a produção no mercado como “queijo de ovelha curado”, sendo que este, fabricado em queijarias familiares, tem muita diferença em relação aos industriais e é vendido bem mais barato que o certificado.
Por quê? A certificação é muito custosa ao produtor?
Não é muito caro e a cobrança está adaptada ao tamanho das queijarias. Devido à crise (política e econômica em Portugal) e a dois ou três produtores maiores que se aproveitaram do mercado e baixaram muito os preços, os menores – em geral queijarias pequenas, geridas por casais – acham que não compensa ter custos com a certificação.
Qual é, em média, a diferença de custo entre o queijo certificado e o não certificado?
Hoje em dia não há tanta diferença. O certificado custa entre 5 e 10 a mais que o não certificado.
A fina flor do cardo
Esta flor cheia de espinhos arroxeados, quase fosforecentes é a flor do cardo (Cynara cardunculus L), essencial no fabrico do queijo serra da estrela. Colhida no verão português, entre junho e julho, é seca e armazenada para durar enquanto houver produção de queijo. Cabe aos seus pistilos coagular o leite de ovelha logo que ele é ordenhado. É usada em pequenas proporções, para não deixar gosto amargo no queijo
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